quarta-feira, 10 de julho de 2024

Da passagem de João da Maia Gama, a serviço do Rei, por Taipu.

 

DIÁRIO DA VIAGEM DE REGRESSO PARA O REINO, DE JOÃO DA MAIA GAMA, E DE INSPEÇÃO DAS BARROS DOS RIOS DO MARANHÃO E DAS CAPITANIAS DO NORTE, EM 1728.

 - A viagem começou em São Luiz do Maranhão, a 4 de setembro de 1728. A parte referente ao Rio Grande do Norte, já em 1729, começa o trecho a partir da região ao norte do atual município de Taipu. O que precede desapareceu.

 

As lagoinhas. Fomos dormir aonde chamam o Trapiá no meio do rio do Cearamirim, que estava seco, e nos aquartelamos nas suas areias.

É este rio todo areado, e está seco todo o verão só com alguns poços de água salobra e se marcha três dias por ele acima, ou atravessando o que se atravessa 47 vezes, e alguns, seguram que se passa mais de 56 vezes, e não tem outro caminho pelo que se faz intratável e impossível a marcha ou saída por fora dele estando cheio.

Pelo que apressamos a viagem e a 22 partimos e passamos o dito Cearamirim doze vezes que estava seco, e passamos o sítio chamado o Taipu, e o Caruru e fomos a fazenda chamada a pedra da Boa Água e assim como chegamos que seria meio-dia começou uma trovoada com uma chuva grossa e continuada que durou todo o resto do dia, e toda a noite de sorte que amanheceu o rio cheio.

Desde o dia 22 até 29 estivemos nesta fazenda sem podermos fazer viagem pelas continuadas chuvas e enchentes do rio que se de manhã começava a diminuir, de tarde tornava a crescer, até que desesperados de que ficaríamos ali desde março até julho ou agosto, me resolvi partir.

A 29 partimos por muitas lamas e atoleiros, passando muitos riachos e junqueiros, que são umas baixas cheias de água que em todas chegava até a sela dos cavalos, e por matos fechados, e de espinhos, andamos duas léguas por livrar de passar duas vezes o dito rio. E vendo-nos todos molhados e nenhuma baixa com perigo de nos cobrir e levar o rio, trabalhos todos a fazer uma balsa de paus podres e secos. E feita a dita balsa nos deitamos a todo o risco a passar o rio ou por vir enchendo e deitar já por cima do lugar em que estávamos, e nos fomos aquartelar da outra parte, no meio de um mato fechado, em um alto de areia e pedregulho, que atolavam os cavalos até os peitos, e a várzea muito mais. E se carregaram as cargas às costas e nos acabamos de aquartelar às 10 horas da noite, éguas, cavalos perdidos que com perigo, trabalho, se passaram no outro dia os que se acharam.

A 30 nos posemos em marcha e não pudemos andar mais que meia légua por se não poder atravessar o rio, nem em tábuas, por ir muito caudaloso e cheio e também por não podermos passar por terra por estar tudo coberto de água, sem dar vau e nos arrancharmos em um alto aonde dizem que não chegava a maior inundação do rio.

A 31, aflitos e agoniados de não podermos passar para diante, nem voltar para trás para a dita fazenda que tínhamos deixado, e indo-nos faltando mantimentos por ter marchado adiante de nós o comboio dos índios que o levavam e termos ficado só com o preciso para os poucos dias que entendíamos acabar de sair do dito rio, consultamos alguns índios que por ali eram mais práticos, e se deitou com eles o comissário geral, Clemente de Azevedo, e com machados e facões a ver se podia abrir alguma picada para ver se podíamos sair daquele perigo e buscar uma fazenda que se entendia ficava perto, para um lado, livrando-nos das passagens do rio. E com efeito metendo-se para o alto, por entre pedras e mato fechado, abriu uma picada de perto de duas léguas em que se gastou todo o dia e se recolheu alta noite a dar-me parte.

Ao primeiro de abril tornou o dito comissário-geral a partir com mais índios e ferramentas para continuar a picada até sair a dita fazenda que se entendia ficava ao lado e muito fora do caminho, para nos refazermos ao menos de carnes por se ter acabado e haver já muito pouca farinha, e passando as duas léguas da picada que tinha aberto o dia dantes e continuou a abrir mais uma légua pouco mais ou menos, e chegando a um riachão o passou a nado com os índios e continuou a dita picada, mandando-me um capitão dos índios e dois mais com aviso para que eu marchasse até o riachão e continuou a picada dois ou três dias com chuvas e lamas, e sem comer até sair da dita fazenda.

A 2 de abril tendo eu determinado partir pelo dito aviso e estando aquartelado no alto aonde diziam não chegava nunca a maior inundação do dito rio.

Amanheceu o dia de 2, enchendo com maior força o rio e de sorte que chegava já água ao dito alto e vendo eu que crescia com força, e que começa a cobrir o alto, mandei pegar as cargas para passar a um monte serrado de espinhos que estava mais apartado do rio, e indo os índios acharam por detrás de nós já outra baixa coberta de água que não dava vau, e por não morrerem os cavalos, todos se deitaram a nado com muito perigo dos índios que os tangiam, e ainda morreram dois cavalos e os mais correram todos riscos. E vendo-nos todos cercados de água, nos subimos às árvores que ali se achavam circunvizinhas altas e grossas, e enchendo ainda com força o rio içamos por cordas para cima das árvores os baús, altar, canastras e selas e dentro em duas horas ficou alto em que estávamos aquartelados todo coberto de água e com altura de oito e nove palmos. E aqui nos consideramos totalmente perdidos, recorrendo a Deus e à Santíssima Virgem e aos santos e almas, com votos e promessas. Começou milagrosamente o rio a diminuir, lá pelas duas horas da tarde, e baixando alguns palmos se deitaram os índios a nado com muito perigo, e foram fazer uma pequena balsa de paus secos que com muito trabalho e muito perigo por entre matos e espinhos, a nado, picados e feridos, índios me trouxeram para fora, para o alto e na mesma forma, ao depois, o Padre Manoel Simião Henriques e logo o Secretário do Estado Manoel Rodrigues Tavares, e se acabou o dia

A 3, amanhecendo pouco mais baixo o rio, se recolheu a bagagem e por estarmos já sem carne, e sem farinha, e com mui pouco biscoito, nos pusemos em marcha por lamas e atoleiros, sem os poderem passar os cavalos montados, caindo e deitando-se a cada passo, e eu e  o reverendo padre e os mais por lama e atoleiros até o joelho, e a cada passo carregando e descarregando as cargas, passando vários riachos que fez o rio e abriu os altos cobrindo tudo de águas e tudo dera lamas e atoleiros, e para andarmos estas duas léguas, marchamos todo o dia e nos aquartelamos já de noite com muita chuva e todos molhados.

A 4, marchamos pouco mais de meia légua por lamas e atoleiros até o riachão e fazendo uma balsa a toda pressa, por via enchendo o rio outra vez, e crescendo o riacho que passamos com perigo na balsa, e carregando as cargas às costas, e nós a pé, por não poderem os cavalos marchar com carga, e ainda sem sela atolavam até a barriga. E assim molhados nos fomos aquartelar em um alto aonde chegaram quatro índios que no dia antecedente tinham ido à caça e achando rasto de um boi perdido, e amontoado o mataram, e nos trouxeram a maior parte da carne dele, de que nos sustentamos por providência de Deus, pois não tínhamos já o que comer.

A 5, nos pusemos em marcha, atolando até o joelho e encontrando ao dito comissário -geral que me vinha dar parte de ter chagado com a picada à fazenda do Inhandu, e tendo andado duas léguas a pé e as cargas às costas nos aquartelamos em um alto.

A 6, marchamos na mesma forma por lamas e atoleiros a pé e os índios passando as cargas às costas por virem os cavalos destruídos e espedaçados e feridos por serem os atoleiros de pedregulhos, e assim andamos pouco mais de légua e meia, até sairmos à dita fazenda aonde achamos invernado um comboio que me largou dois surrões de farinha, à moeda de ouro cada um, e mandamos matar dois bois, de que se comeu e se assou, ou enteirou a mais carne de noite para marcharmos no outro dia.

A 7, saímos desta fazenda e marchamos também por águas e lamas que chegavam até as selas, passamos o Primeiro Taipu e com chuva continuada já montados a cavalos e com bastante perigo atravessamos a várzea que chamam do Taipu, e baixos cheios de água que nos chagava até as barreiras da sela e marchamos molhados já de noite com um guia para nos livrar do negregado rio Cearamirim, e nos fomos aquartelar no sítio Taipu de Baixo. E se admiraram e pasmaram todos de que com o dito rio cheio e com tal tempo, pudéssemos sair dele sem o passar, o que nunca pôde conseguir pessoa alguma, nem branca nem preta, por mais que faça. O que se deve ao zelo, atividade e trabalho do dito comissário-geral, Clemente de Azevedo, que buscando os altos e subindo-se acima das arvores, e vendo por onde corria o rio, ou algum alto, mandava abrir para ele a picada, apartando-se do rio e livrando a sua passagem e abrindo a dita picada, até conseguirmos sair à dita fazenda.

A 8, amanheceu o dito negregado excomungado rio cheio até deitar por fora e se não tivéssemos no dia antecedente passado com trabalho a dita várzea do Defunto, e as ditas baixas não pudéramos sair para fora por se alargar tudo outra vez, e assim demos graças a Deus, e nos pusemos em marcha e viemos à Aldeia de Guagiru, administrada pelos reverendo padres da Companhia aonde achamos do capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Moraes Navarro, com várias pessoas que me estavam esperando tendo notícia o dito capitão-mor que eu tinha entrado o dito Cearamirim, e chagando a Fazenda da Boa Água por uns índios que tinham passado adiante, escoteiros, e vendo que da dita fazenda até o Taipu eram só dois dias de marcha, e que se tinham gastado mais de quinze sem eu aparecer, convocou todos os homens do Rio Grande, e os mais antigos, e práticos daqueles sertões para lhe apontarem o meio de acudir a minha necessidade, perigo e aflição em que me considerava com a cheia do dito negregado rio, e assentaram todos que não havia caminho, ou meio para me acudir nem eu tinha mais remédio que esperar que baixasse o rio o que obrigou ao capitão-mor a passar a aldeia a ver se achava remédio nos índios para me acudir, e ficou detendo na dita aldeia a ver se chegava alguma notícia minha e assim quando me viram se admiraram todos de ver o impossível que tínhamos vencido.

A 9, saímos da dita aldeia e marchamos três léguas para quatro a buscar a passagem do rio Potengi que é o mesmo Rio Grande, e fomos passar junto da barra e defronte da Cidade do Natal do Rio Grande aonde chegamos e passaram os cavalos com muito trabalho e perigo aboiados e atracados às canoas, e se gastou nesta passagem até depois da meia-noite, e quis Deus estar a noite boa e serena.

A 10, Domingo de Ramos, depois da missa fui ver a fortaleza, e barra para ver se podia continuar a viagem, porém chovendo, e entrando a Semana Santa me resolvi a passa-la nesta cidade.

A fortaleza foi feita pelos holandeses e fundada sobre um recife de pedra a que acomodaram a planta da fortificação fazendo-a regular, e franquiada por toda a parte pelo modo possível sem embargo que lhe ficam uns morros de areia não muito distantes quase cavaleiros donde pode ser batida e rendida.

A dita fortaleza, ainda que pequena, tem dentro em si todos os cômodos e oficinas necessárias, como capela, casa de pólvora, armazéns e quartéis, e as obras exteriores de muralha e sapata estão preparadas de novo e também as esplanadas dos baluartes em que joga a artilharia, porém os quarteis e casas interiores estão ameaçando ruína por estarem as madeiras podres e danificadas, e quase vindo abaixo os telhados, de que se deu parte a Pernambuco e se puseram em praça, e se não tinham arrematado por ser o preço muito levantado, e mais do que valiam. E eu representei ao governador de Pernambuco que seria mais útil fazer-se a jornal porque seria obra mais segura e mais durável, e de melhores madeiras sendo esta obra administrada pelo capitão-mor que certamente tem zelo e procura com seu honrado procedimento aumentar o seu serviço, e merecimento para ser acrescentado e fazendo-se também provedor da fazenda, mais inteligente e esperto do que servia por ser este menos prático, e sem exercício na administração da fazenda por ter sido o seu exercício mui diferente. Mas o governador de Pernambuco com segurança das ordens de Vossa Majestade respondeu que não podia deixar de mandar arrematar em praça.

A dita fortaleza defende muito bem a barra, e entrada do rio por estar na ponta do recife, e defronte de um picão de pedra que ficará da mesma fortaleza não sei se trinta braças entre o qual e a fortaleza vai o canal por onde entram navios, e tem fundo para qualquer nau, e se não ficará o dito picão tão perto poderiam entrar muitas naus, e estar dentro qualquer armada porque tem fundo limpo, abrigado e seguro, e é a melhor barra que tem toda esta costa deste o maranhão até o mesmo Rio Grande.

A cidade é fundada em um alto ainda que muito areento, contudo com terreno muito capaz e lavado dos ventos, e tem cinquenta para 60 casas e muitas mais perto da cidade porque a mais da gente vive nas suas fazenda.

 

Fonte:

Galvão, Hélio. História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. MEC, Conselho Federal de Cultura, 1979. Pág. 277, 278, 279 e 280.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Recordação de uma 1ª comunhão na nossa paróquia

  No ano de 1981 (provável), Henrique Rocha e Acilênio Araújo recebiam, da mãos do Padre Aquino, em saudosa memória, a primeira eucaristia. ...